De Alexandria a São Paulo: uma viagem pela História da Igreja.

Do Egito chegam continuamente as lamentáveis notícias sobre a perseguição a que estão submetidos sistematicamente os cristãos, de modo particular os coptas. Recolhidos em guetos, acostumaram-se a viver à margem da sociedade egípcia e, no entanto, que maravilhosa cultura ignorada pelo Ocidente e perseguida pelo fundamentalismo islâmico!mulher-copta

A perseguição recente aos coptas me fez lembrar do contato que tivemos com a pequena comunidade de São Paulo por ocasião da visita de Shenouda III, em fevereiro de 2006. Aquela foi a primeira vez que um sucessor de São Marcos e Papa de Alexandria pôs os pés na América Latina. Uma Igreja pequena, mas de notável beleza, dedicada a São Marcos e situada numa rua pouco movimentada do Bairro Jabaquara, foi palco para o acontecimento mais esperado pelos fiéis coptas do Brasil.

A visita de Sua Beatitude Senhouda III, Papa de Alexandria, tinha como ponto alto a sagração desta Igreja, no dia 12 de Fevereiro de 2006. No Brasil, a única comunidade copta  é a de São Paulo, com cerca de 100 fiéis, quase todos convertidos pelo trabalho de um único padre, o simpático egípcio Aghason Anba Paul que, num português muito peculiar, oficia a Divina Liturgia para os fiéis brasileiros. Padre Aghason foi ordenado bispo naquela mesmo ano e assumiu a diocese copta do Brasil.

Segundo a Tradição Copta, Shenouda III foi o 117o sucessor de São Marcos à frente da Igreja de Alexandria. O título de Papa dado ao patriarca de Alexandria é muito antigo. Consta que começou a ser usado pelos patriarcas da  Sé de Marcos, antes mesmo que o Bispo de Roma dele fizesse uso. Atualmente os coptas não estão em comunhão nem com Roma, nem com a Ortodoxia bizantina, liderada pelo Patriarca ecumênico de Constantinopla. A ruptura dos coptas deu-se, definitivamente, no Concílio de Calcedônia (451), quando Dióscoro, então Patriarca de Alexandria, foi condenado por haver readmitido Êutiques, o grande monofisista, no seio da Igreja. Dióscoro rejeitou o arbítrio da Assembléia calcedoniana, levando à revolta, contra o Patriarca de Constantinopla, o clero, os monges e os cristãos do Egito. Com efeito, até hoje, os coptas só reconhecem os concílios de Nicéia, Constantinopla e Éfeso.

Como os coptas do século V repudiaram o Concílio de Calcedônia, que condenou o monofisismo, ainda hoje se acredita, erroneamente, que eles continuem monofisistas radicais. Mas pode-se dizer que, do ponto de vista cristológico, na atualidade, coptas, ortodoxos e católicos romanos não têm grandes divergências no modo de conceber a relação entre as naturezas de Cristo.

Seja como for, foi este homem – sucessor de São Marcos, o evangelista que morreu arrastado pelas ruas de Alexandria; sucessor de Dióscoro, o bispo que levou à revolta os cristãos africanos –  que oficiou a Sagração deste pequeno Templo em São Paulo. Uma parte da História da Igreja pôde ser vivida durante a liturgia – tanto mais bela quanto mais antiga – codificada no século IV, por São Basílio Magno, esplendor do Concílio de Constantinopla, que salvou a Igreja do equívoco ariano. A cerimônia constou de três momentos: uma espécie de Ante-missa, a Sagração da Igreja e, finalmente, a Divina Liturgia, isto é, a Missa, propriamente dita.

A cerimônia começou às 8:30h. Anunciada a chegada de Sua Beatitude Shenouda III, o padre Aghason não contém seu entusiasmo, corre de um lado para o outro, verifica todos os detalhes, precipita-se, com agitação, em todas as direções, causa mesmo riso em alguns assistentes. Espera-se a entrada do Papa! A Igreja está repleta, mas há lugar para todos. Nós estamos sentados nos primeiros bancos, belíssimos, todos confeccionados no Egito e montados aqui por profissionais egípcios. Sentados nos primeiros bancos não perderemos nada. Vê-se a inquietação dos fiéis, todos de olhos fixos no principal Pórtico da Igreja. O diácono começa a entoar hinos em copta, sons incompreensíveis, o que redobra a expectativa. A pequena multidão que se formara em torno do Pórtico cede e Shenouda III adentra o Templo. Que venerável ancião!!! Longa barba grisalha, passo lento, na mão direita uma cruz. Raramente a deixará durante a celebração. Ainda não está revestido dos paramentos litúrgicos, isso será feito no altar, sob o olhar atento da assembleia: vestes, capas, coroa, cruz… Eis que o Papa está pronto!

A Ante-missa começa. Os diáconos recitam hinos coptas. Neste momento, dom Cláudio Hummes, então cardeal-arcebispo de São Paulo chega à Igreja, aproxima-se do altar. Alguém o conduz até Shenouda III e eles se cumprimentam respeitosamente. O cardeal se retira, o papa o chama novamente; novos abraços, agora mais efusivos. Finalmente, o cardeal deixa a Igreja. Não poderá participar de toda a cerimônia. Terminada a Ante-missa, o Papa inicia a cerimônia de Sagração, dedica a Igreja a São Marcos, abençoa os ícones, todos pintados num longínquo mosteiro, por uma monja egípcia. Ao final da Sagração, Sua Santidade dirige, em inglês, algumas palavras aos assistentes. Fala sobre a importância deste Templo, recomenda que ali haja também encontros para jovens e crianças, recomenda o zelo pela casa de Deus. No momento da comunhão, exorta o papa, os fiéis deverão tirar os sapatos. Nenhum fiel, salvo os ministros do altar, deverá ultrapassar a iconostase, espécie de muro coberto de ícones, que separa o altar de celebração do resto da Assembléia: é o lugar Santo!!!

Após receber lembranças das autoridades ortodoxas ali presentes, Shenouda III retira-se para batizar algumas crianças. O batismo é feito à entrada da Igreja, num pórtico reservado exclusivamente para este fim. A assembléia não acompanha este momento, permanece na Igreja. Os bispos e padres começam a oficiar a Divina Liturgia em copta, árabe, inglês e português.

Terminada a Missa, por volta de 12:00h, recebemos algumas lembranças da Cerimônia. Apesar da insistência de uma senhora em fechar o portão,  alguns se dirigiam para uma outra área. Não havia dúvida: era por ali que Shenouda deixaria a Igreja. Misturados aos coptas, antes que o portão se fechasse, nos precipitamos corredor a dentro. Graças a isto, provamos do pão que um bispo oferecia aos fiéis e tivemos ainda a possibilidade de cumprimentar Sua Beatitude. Com seu andar sereno, mais sorridente que quando chegara, Shenouda III se despediu dos que o acompanhavam até o carro. Naquele mesmo dia, conforme nos informaram, deixaria o Brasil, o 117o Sucessor de São Marcos, Patriarca de Alexandria e de toda África. E nós tomamos o metrô de volta para casa, felizes, porque não é todo dia que se encontra por aí um Papa Copta. Shenouda III morreu há pouco mais de um ano, no dia 17 de março de 2012, que do céu abençoe e interceda a Deus pelo seu povo! O atual papa Copta Tawadros se encontrará com nosso papa Francisco no próximo dia 05 de maio, e juntos rezarão pela unidade dos entre os cristãos. Não estamos proibidos de sonhar que um dia, estas duas grandes tradições cristãs estejam completamente unidas e reconciliadas,  a fim de que realize-se o sonho de Jesus, que todos sejamos um.

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